terça-feira, 17 de abril de 2012

As Destruições de Desterro


        Por Marcelo Peregrino*
 
    Para encerrar o dia que marca os 286 anos de Florianópolis um belo texto do advogado Marcelo Peregrino Ferreira, intitulado "As Destruições de Desterro".  A reflexão é longa, mas rica e merecedora de leitura. Confira:
   "Barcos a vela se perdem entre um mar calmo que os separa de um muro abaixo.   Logo após, o Mercado e potes de barro, verduras, peixes, todos ombreados por casarios coloridos, apopulação em procissão entre as improvisadas bancas, trazendo a lembrança a Ilha de Corfu ou Mykonos na Grécia. É difícil não ter saudade desta cidade onde não vivi. Aliás, dizem que muitos gregos que por aqui aportaram o fizeram pela semelhança com a terra natal. E a terrinha já era adorada e desejada há tempos, como registra o monumental trabalho de Gilberto Gerlach nos livros que com fotos, relatos e pinturas desenha nossas origens. Não é por outra razão que o apoio da   Armada Inglesa à fuga de D. João de Napolão tinha três condições:
abertura dos portos, diminuição das tarifas alfandegárias e anexação da Ilha de Santa Catarina. Pois o Rei não entregou a Ilha, única das promessas não cumpridas. Um pouco da organização e impessoalidade inglesas teriam feito bem.
    O tranquilo cenário marinho de outrora se comparado à parede argenta de concreto mediada por um camelódromo de hoje lembra a infinita capacidade de autodestruição do homem. Olhando a foto antiga da cidade de Florianópolis, não há como afastar a tristeza pela depredação de uma das paisagens mais lindas do mundo. Imagina-se se tivesse sobrevivido à verticalização e derrubada inclemente dos casarões históricos tão bem descritos por Domingos Fossari e por Martinho de Haro, para se colocar horríveis e tacanhos prédios de concreto, monumentos à mediocridade da cidade e de sua elite (algumas dessas fotos estão expostas na Rua Trajano, esquina com rua Vidal Ramos, em frente ao Café Trajano, na lateral de um prédio).
    Por outro lado, sem o aterro e com a preservação do centro histórico, cogita-se também o quão valioso seria este cenário se bem explorado, como mais a ganância humana não poderia se fartar igualmente, ao invés da aniquilação simples da herança histórica? Tudo, em nome de monstruosos pombais comerciais. De novo repetimos o feito na avacalhação do aterro do acesso ao aeroporto com invasão de prédios públicos sobre um lindo parque que poderia se assentar ali.
    Não se conclua precipitadamente que há, necessariamente, uma contraposição entre velho e novo. Deve ser privilegiado o compartilhamento de espaços, como se faz, por sinal, em todo o mundo onde as cidades convivem com seus prédios históricos, museus, referência da história  e com a necessidade voraz e ilimitada da construção civil.
    A derrubada da história permite, na absoluta falta de referência, tudo. Tudo é possível em Florianópolis. Até a destruição do monumento à visita de um Papa. Destruição é esquecimento.
    Qualquer alteração estética, urbanística é permitida. Há um torpor, uma ausência de sentimento comunitário, de pertencimento que permite em Florianópolis que monstrengos como a Passarela Nego Quirido e o Centro de Convenções não tenham levado seus idealizadores à prisão pelo mau gosto em primeiro e pela inadequação em segundo. Ambos símbolos da imprevisão, de costas para o mar, feios, disfuncionais impedindo o escoamento de uma via rápida, fruto do projeto naufragado de crescimento para o Sul da cidade (o mal se alastra: Rancho Queimado deu sua contribuição ao colocar uma cobertura de plástico azul sobre sua bucólica praça, para proteger seus habitantes do sol escaldante daquelas plagas. E Lajes permitiu a construção de um prédio de apartamentos ao lado da Igreja Matriz, ofuscando-a por completo, com o intuito de contornar a falta de terras na região).
    A destruição seque adiante na inversão do que Freud chamou de “narcisismo das pequenas diferenças” para atingir a população nativa. Um grupo, a pretexto de manter a unidade, hostiliza outro. Briga para além do seu círculo para firmar a identidade: torcidas de Avai/Figueirense; paulistas e cariocas. Porém, em Desterro, a hostilidade é contra o próprio grupo, enaltecendo-se uma visão caricata, triste mesmo do ilhéu como o infeliz “manezinho”, similar ilhéu do “jeca tatu”, o caipira.
    Uma simplificação lamentável ainda que bem intencionada de um vocabulário castiço, dos herdeiros de uma cultura helênica, cujos nomes denunciam a influência do Velho Continente: Tertuliano, Trajano, Belisário (ambos citados nos Lusíadas), Homero (conheci um filho de pescador chamado Tucidides, homônimo do autor do clássico História da Guerra do Peloponeso). Palavras vistas como mostras de ignorância no teatral e incompreensível “enaltecimento” da cultura do “manezinho” como inchume, atulhar, freje, reinar (como sinônimo de birra), tranqueira estão presentes em Eça de Queirós (Alves e Cia; A Relíquia; Correspondência de Fradique Mendes), em Alexandre Herculano e no próprio Luís de Camões. A ilha talvez seja o único lugar do mundo em que a diversidade e riqueza de vocabulário sejam sinônimos de pobreza, do simplório “manezinho”. Aqui às avessas, não simplesmente hostilizamos o diferente para nos sentirmos parte de algo, mas nos humilhamos zombeteiros em praça pública para sermos uma unidade. E com orgulho, diga-se! Há inequívoca influência bruxólica nesta equação!
    Também choram as memórias de Victor Meirelles, Martinho de Haro e Cruz e Souza. O primeiro pelo menos já tem um museu. Cruz e Souza, paradoxalmente, tem a vantagem da cor, tendo até um belo e chatíssimo filme. Haverá ONGs de sobra para promover as aliterações e ressonâncias do maior Simbolista Brasileiro.
    Martinho de Haro, no entanto, continua no limbo, apesar do documentário de Pereira e da última exposição no CIC. E falo apenas dos “já idos”, porque Vera Sabino e Rodrigo de Haro, por exemplo, nada devem aos maiores nomes da pintura nacional. E foi exatamente Martinho quem anteviu a tragédia e mais amor dedicou à cidade, abandonando o grande centro, a companhia de Di Cavalcanti, seu amigo, para se exilar em Desterro, como um sinal claro da noção de sua importância e da singularidade da capital. Nada mais provinciano do que ir morar no Rio de Janeiro, disse um sábio. Não apenas lutou contra a derrubada da Casa da Alfândega (sim, já houve tentativas), mas a cada casario derrubado, conforme relato de seu filho, parecia sentir as dores das marretas na história desterrense ao ver os calhaus com areia, madeira e óleo de baleia juntarem-se às telhas quebradas. Como lembrou o poeta lusitano aqui mencionado: "Este será Martinho, que de Marte/O nome tem co as obras derivado;
Tanto em armas ilustre em toda parte/Quanto, em conselho, sábio e bem cuidado”.   Conseguiu ele imortalizar o desprezo de uma cidade e sua ignorância em suas telas, mas seu talento continua insuficientemente reconhecido.
    Destruindo a cidade, a história e seus habitantes estamos caminhando a passos largos para a insignificância. Viraremos uma Grande São Paulo sem as suas qualidades.
    A conhecida fórmula do “canta a tua aldeia para chegar ao universal”, funciona no mundo inteiro. O Bairro Chiado é nomeado após um poeta, em Lisboa. Ali se toma café no Brasileira, sob os olhos da estátua de Fernando Pessoa. Barcelona vive em torno de Gaudi, extraindo riqueza para o turismo dos mosaicos, arquitetura e desenhos todos transmutados em chaveirinhos, cartões, bolsas e tudo mais que seja vendável. Roma tem seu Giotto, Caravaggio, Michelangelo e tantos outros (e mais importantes homenagens à Anita Garibaldi que em SC). Madrid seu Museu do Prado e a pinacoteca transbordando de Goya, Velasquez e por aí vai... E as belas e antigas construções. Ninguém quer ver uma insossa selva de pedra, de onde não se vê o mar, senão do topo de um prédio.
    Não tenho nenhuma esperança em uma ação estatal. Ali parece vicejar a corrupção, o descaso e o desconhecimento total sobre o objeto de sua administração. A não ser que haja gênios escondidos em gavetas estatais. Ninguém parece ter lido Oswaldo Cabral e o seu encantamento com Desterro. Todo prefeito parece só querer obra como elevados e asfalto, nem que a merda tenha que ser jogada no mar. Falta até a vaidade de deixar um legado mais duradouro que pontes suspensas. Pobres de seus panegiristas e outros bajuladores.
    Espero mesmo uma iniciativa capitalista ou associativa que queira deixar um uma obra perene e invista, por exemplo, num percurso histórico no centro da cidade. Coisa simples. Do contrário, pelo caminho da destruição adotado com furor pela construção civil e pela ignorância de Vereadores, Prefeitos, Governadores e Deputados, sem qualquer limite, na cidade poluída, imobilizada e decadente caberá somente sentir saudades de como era e do que podia ter sido e contentar-se com a pompa dos nomes grandiosos e em língua estrangeira escolhidos para os edifícios...

*Marcelo Ramos Peregrino Ferreira, cidadão de Florianópolis.”

Comentário - O texto do Marcelo Peregrino mostra a decadência de uma Ilha, outrora grega e açoriana, travestida de pauliceia desvairada como diria o colunista Beto Stodieck. Uma mistura de brega e cafona compõe a nomenclatura dos prédios que aludem ao idioma francês, par excellence. Também é verdade que a média dos vereadores e prefeitos, salvo exceções, tem capacidade e instrução relativas. Afora aspectos morais, cuja evidência é pública. O centro da cidade e algumas das praias, como Jurerê ou Ingleses, são uma mescla do bailão do Albino com o brega chic nacional. Uma tela do Martinho de Haro ou de seu filho Rodrigo, podem ser confundidas com um aviso de céu nublado ou vasos de primavera. Não por acaso, boa parte das obras de artistas catarinenses, sumiu dos acervos do Besc, Alesc, Codesc e foram para as casas das mães joanas. O Marcelo é minoria, infelizmente, numa multidão de ignorantes por falta de educação e outros de caráter esfarelado. Este blog reflete o que a imprensa local já não pode.

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