quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Crônicas do Irani (4)

         Combate frente a frente
“Combate-no-Irani”. Quadro de Daniel Freire. Acervo PMPr. Reprodução Celso Martins. A foto mostra o coronel João Gualberto à frente do Combate do Irani em 22 de outubro de 1912.
Por Celso Martins*

No reduto do Irani ocorreram conversações visando à retirada de José Maria e sua gente. O monge teria aceitado a proposta apresentada por seu amigo coronel Domingos Soares. A decisão não foi bem recebida pelos demais. Realizada uma espécie de assembléia geral, foi aprovada a proposta de José Fabrício das Neves de que todos permanecessem no local e recebessem a força policial à bala. Dito e feito!
Bem antes do amanhecer do dia 22 de outubro de 1912, as forças policiais já ocupavam terreno na região do Banhado Grande. Três casas pertencentes à família Santos (Bento Quitério) foram ocupadas. “Feito o cerco das referidas casas alguém atirou do mato sobre a nossa gente, ao que não se ligou importância”, escreveu ao governador do Paraná, dois dias depois, o chefe de polícia Vieira Cavalcanti. Achavam que o tiro fora disparado por algum caçador. “Novos tiros partiram sobre as praças que guarneciam uma das casas”.
Seguiu-se um tiroteio de cerca de cinco minutos entre as tropas e o grupo armado de oito a 10 homens que “corriam em direção à mata oposta”. E quem eram estes homens? José Fabrício das Neves era o comandante. Outros Fabrícios e homens como José Alves Perão, conhecido por José Felisberto, estariam com ele.
Este primeiro ataque alarmou as forças policiais. Os soldados foram colocados em linha de combate. A famosa metralhadora estava num ponto alto, nas mãos de João Gualberto. Ele conseguiu efetuar os primeiros disparos, mas em seguida a arma emperrou. Foi nesse momento que surgiu do meio da floresta “à nossa frente, a cavalaria dos fanáticos”, acompanhada por “grosso contingente de gente a pé”, escreve o mesmo Vieira Cavalcanti. Esse ataque foi conduzido pessoalmente por José Maria que, segundo o Processo do Irani, usava um chapéu de cor vinho. “Essa multidão”, diz, “calculada em número superior a 300, avançava para a nossa força como uma verdadeira avalanche afrontando a nossa fuzilaria que desde o começo era cerrada e contínua”.
Estamos usando a narrativa oficial do combate pelo seguinte motivo: se tivesse havido uma emboscada, como sugerem no próprio Irani, ela estaria registrada.
Continua Vieira Cavalcanti: “Os fanáticos avançavam sempre saltando sobre os cadáveres de seus companheiros e pouco se importando com a fuzilaria que abria claros enormes em suas fileiras”. Foi assim que alcançaram “as primeiras fileiras da nossa vanguarda e desembainhando seus facões, começaram a mais tremenda carnificina que se pode dar”. Aconteceu então o chamado entrevero. Os soldados, sem munição, “passaram a brigar a coice de carabina”. A cavalaria, cuja munição fora tomada pelos rebeldes, se defendia com revólveres.
“Atacados fortemente pela frente”, reafirma Cavalcanti, a cavalaria sob o comando do tenente Busse recuou até a casa onde deveria estar o comandante João Gualberto. Se vendo cercados os homens fugiram, sendo perseguidos por cerca de 50 caboclos “que só não os alcançaram por estarem a pé”. Cerca de 40 carabinas foram deixadas para trás, alguns mosquetões e três mil cartuchos, mais a metralhadora com quatro fitas carregadas cada uma com 250 balas. (Relatório Setembrino, p. 183-184)
Outro depoimento insuspeito é do oficial da Policia Militar do Paraná, João Alves da Rosa Filho, autor do livro “Combate do Irani” (Curitiba, 1998).  Diz que após o primeiro ataque o comandante João Gualberto e alguns policiais foram colher e debulhar milho para dar aos cavalos. Foi nesse momento que aconteceu o segundo ataque. João Gualberto, sem poder usar a metralhadora disse aos soldados que estavam próximos: “Peguem as armas, meus filhos, pois estamos perdidos, mas tenham coragem”.
O mesmo Rosa Filho acrescenta que nesse momento, a uns 700 metros a frente da tropa, “num abrir e fechar de olhos começou a surgir uma verdadeira multidão de caboclos”, avançando sem “o menor receio”, tomados por uma espécie de “furor”. Eram cerca de 300, sendo que cerca de 100 faziam a vanguarda e o restante vinha a pé “correndo e dando gritos alucinantes”. À frente estava José Maria e seus Doze Pares de França. João Gualberto mandou abrir fogo mas, “apesar das descargas sucessivas dos milicianos, os fanáticos avançavam sem trepidar e sem ter um momento de vacilação”.
Desesperado, João Gualberto tentou mais uma vez fazer funcionar a metralhadora. Não conseguindo e, “mordendo-se de raiva”, observa Rosa Filho, apanhou a carabina de um soldado ferido e “passou a lutar” ao lado dos comandados. Diante da fuzilaria da polícia os atacantes pararam alguns momentos e aparentemente se dispersaram, voltando a reagrupar-se e “passando por cima dos que caíam, avançavam cada vez mais, com grande alarido”. Os caboclos avançaram sem piedade, armados de garruchas ou Winchester na mão esquerda e “na direita enormes facões”.
            Um pouco desorientados, os policiais resistiram. “Lutavam como podiam, defendendo-se a qualquer custo”. Gualberto ordenou o calar baioneta, mas elas não se fixavam nas presilhas dos sabres e “saltavam longe aos primeiros tiros”. Na seqüência veio o ataque corpo-a-corpo, disparos a queima-roupa, obrigando os policiais a uma atitude defensiva. Os Pares de França executavam pela primeira vez as suas “diabólicas cabriolas de esgrimistas”.
            Somente nos “últimos momentos da luta”, continua Rosa Filho, “quando os fanáticos já tinham convergido pela esquerda, atacando também pela retaguarda”, é que José Maria foi abatido a tiros pelo sargento Joaquim Virgílio da Rosa, morto em seguida.  A luta continuou e “ambos os lados combatiam com heroísmo e denodo”, observa o autor citado.
O coronel João Gualberto lutou bravamente. Inicialmente recebeu um tiro no peito, diz Rosa Filho. No Processo do Irani de 1912, aparece que o disparo foi dado por José Fabrício das Neves. Em seguida outros caboclos o “picaram” no facão, ou seja, “seu corpo foi estraçalhado a ponto de não ser reconhecido”. A versão que ficou, alimentada por Rosa Filho e outros autores, foi que José Fabrício deu o “golpe de misericórdia” ou matou João Gualberto. Ainda hoje, no site da Polícia Militar do Paraná, José Fabrício aparece como o “assassino” do coronel João Gualberto, quando vimos que sua morte ocorreu em meio a uma violenta batalha. (Por Celso Martins, outubro de 2011)

Fontes
CAVALCANTI, Vieira. Relatório do chefe de polícia Manoel Bernardino Vieira Cavalcanti Filho ao governador do Paraná Carlos Cavalcanti de Albuquerque. Palmas, 24 de outubro de 1912. In Relatório apresentado ao general José Caetano de Faria, ministro da Guerra, pelo comandante das forças em operação de guerra no Contestado. Rio de Janeiro: Imprensa Militar, 1915.
ROSA FILHO, João Alves. Combate do Irani. Associação da Vila Militar: Curitiba, 1998.

*Celso Martins é jornalista e historiador, autor de O mato do tigre e o campo do gato: José Fabrício das Neves e o Combate do Irani. Florianópolis: Insular, 2007.

Nenhum comentário:

Postar um comentário