quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

OLHAR

Bar Les 3 diables, Nice, França.
Conto do Emanuel Medeiros Vieira

   Entendo o olhar das pessoas. É o que sei – perco documentos, tenho que fazer segunda via, mas entendo o olhar das pessoas.
   Não é muito? Sei pouco do resto.
Ela era frentista dum posto de gasolina na 315 Sul.
   Tinha uma filha que estudava numa escola pública.
   Foi assim, assim. Conversando.
   Queria sair com a moça. Ela era brava demais. Ela era terna demais. Não ao mesmo tempo. Não sei explicar.
   Cansada de receber cantada dos rapazes ricos da região, ela levando aquela vida dura, começando às seis da manhã, tendo que sair antes das cinco de casa.
   Quem sabe, ele também conhecesse o olhar das pessoas.
Quando falo em olhar, estou dizendo coração, alma, vísceras, tudo.
   Se quase sempre o outro era um inferno na nossa vida, às vezes um momento poderia ser bom – mesmo um tempinho só, relâmpago, nuvem bem breve. 
   A moça não entendia o meu interesse em relação a ela.
   Tirou o macacão, a jornada estava encerrada.
   Não haveria mais posto de gasolina naquele dia.
   Quando voltou, parecia outra pessoa, cabelos escorridos, lábios pouco pintados, sorridente, tão feminina.
    O uniforme do serviço não era ela. O uniforme era só o uniforme.
– Você é bonita.
   Num segundo , num só segundo, contemplei a árvore em frente. Nós os viventes, vamos existindo assim, todos os dias, o tempo não parando, sem saber quando sairemos desse mundo.  É esse viver diário que leva à eternidade? Não, não queria fazer filosofia, não queria parecer pessimista, não queria pensar no mundo, nada, só desejava sair com a moça.
Você está falando sozinho? – ela me perguntou sorrindo.
Eu sempre falo sozinho. Mas para dentro.
   Sorri para ela.
– Às vezes, falo com os outros. Converso com bichos, plantas, árvores, e com os meus diabos.
   Ela riu de novo, com simpatia. Mais um louco, talvez tenha pensado.
– O senhor é estranho, diferente – e olhou-me fixamente.
   Também ri. Era o dia das “filosofices”. Somos todos estranhos – monologuei.
– Me chama de você, eu pedi.
   Ela me olhou de novo, mais profundamente ainda.
– O senhor é diferente dos outros homens que abastecem aqui e daqueles que moram perto de mim.
   Sempre o “senhor”.
   Ela morava no entorno, já em Goiás.
   Não havia perguntado o seu nome. Então, é “ela”. Sempre “ela”.
– Você sempre escreve a mesma coisa.
   Eram os meus diabinhos que falavam.
   Eu sei, mexo no estilo, mudo, corto, vario, mas não adianta. Não mudo os temas ou os temas é que não mudam?
– Você sempre tem um álibi para a repetição.
   Os velhos demônios não se convenciam.
   Nunca concordavam comigo.
   Mas essa vida é sempre igual – tentei argumentar
   Os demônios me deram um sossego.
   Pensei no que monologara: mas essa vida é sempre igual.    Sinceramente, acho que não está igual.
   Está pior. Mais aborrecimento, mais Mal, mais trânsito, mais dor. Os diabinhos riram. Parecia um coral.
– Está incomodado com a velhice? – eles indagaram.    Pareciam ainda mais sardônicos.
– Está tão queixoso...
– Está perturbado com a morte que virá?
   Foram três perguntas seguidas.
– Não adianta, vamos todos morrer – os capetas constataram, e riram intensamente.
   Eles falavam. Eu fiquei quieto.
– Não adianta, você continua o velho moralista – falou um diabo.
   Um demônio pareceu cutucar o outro.
   Todos me cutucavam.
   As religiões existem por causa do medo da morte – eu falava para dentro.
– Assaltaram o posto ontem à noite, mas eu trabalho de dia – a moça me informou.
– Ainda bem – e senti-me confortado.
– Você tem alguém? – indaguei.
– Tenho.
   Tudo é sempre assim: um filho, um marido, um ônibus, um emprego mixuruca, um lugar distante.
   Não perguntei a sua idade. Vinte e três anos?
   Vinte e cinco? Isso eu não sei responder.
   Eu sei, já sou um senhor.  Estou mais perto Dela.              
– No assalto, atiraram no meu colega. Ele já tinha dado o dinheiro. Só atiraram por atirar.
Relatou o caso, como algo da rotina. Sem qualquer drama. Como algo natural.
– E ele morreu?
– Está muito mal no hospital.
   Não sei a razão da moça me relatado o ocorrido.
– Eu não tenho nem o Segundo Grau – me contou.
Isso não me interessa – eu falei com sinceridade e intensidade.
Os diabinhos riram: sinceridade e intensidade...
– Eu nunca posso buscar uma verdade humana?– perguntei irritado.
   Os capetas continuaram debochando.
   Convidei-a para um lanche.
   Ela comeu um pedaço de pizza como se estivesse vendo o mar pela primeira vez.
   Era bonito de ver. Tomando uma coca, botando molho na pizza.
– Eu pego o ônibus aqui no Eixinho, ela informou.
– Vai em pé ou sentada?
– Quase sempre em pé.
– Posso te deixar na rodoviária, disse.
– Tá bom.
   Ela contou também que o gerente do posto a aporrinhava todos os dias.
   Vingando-se nos empregados das broncas do proprietário.
– Você é evangélica?
– Por quê?
– É que no entorno, todo mundo parece que é ou vai ser.
– Não, eu não sou, mas quase toda a vizinhança é. Só dá traficante e evangélico.
   Chegamos à rodoviária. Ela desceu do carro.
   “Tchau”. Tchau. Arrumou o cabelo e desapareceu no meio da multidão.
* Querido Emanuel, 
os teus 3 diabinhos me lembraram esse bar, Les 3 Diables, que fica no Les Ponchettes, na Viex Nice e que frequentei com assiduidade em um período que passei por lá.
Daí a ilustração.
Abração, amigo!

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